29.1.07

O grande laboratório humano

A mudança generalizada de regimes na África - como a queda de Siad Barre, na Somália, a ascensão de Nelson Mandela na África do Sul e a transição dramática em Ruanda - propiciou ondas de violência que varreram o continente durante a década de 90. Apesar da história africana estar povoada de episódios de violência intertribal, principalmente depois da criação arbitrária de seus países, os últimos vinte anos mostram um recrudescimento destes conflitos. Talvez o fim da Guerra Fria tenha uma parcela considerável de envolvimento com isso, por ter estimulado lutas em um campo neutro - para as nações envolvidas, evidentemente. O apoio soviético ou americano armou e destruiu regiões inteiras, e sua supressão sem planejamento em nada contribuiu para uma reorganização política saudável. Algo como o que os EUA alegam pretender fazer com o Iraque, por exemplo.

Se por um lado a falta de apoio das auto-intituladas "nações desenvolvidas" - e não cito aqui apenas os EUA, mas Inglaterra, Alemanha e particularmente a França - não contribuiu como poderia para a reconstrução do continente, por outro levou os países africanos a criar suas próprias soluções para os problemas enfrentados. A ajuda da ONU foi cosmética em alguns casos, atrapalhada em outros, e quase sempre levada à pouca eficácia pela dificuldade em compreender diferenças sociais e culturais e pela imobilidade gerada nas políticas dos países que a compõem; as alternativas formuladas, muitas vezes, deveriam servir de lição para o Ocidente maravilha.

Na Somália, o governo de transição encontra-se hoje mais ou menos no mesmo ponto em que se encontrava antes da invasão da capital pelo exército etíope. Depois de várias mortes e incontáveis violações dos direitos humanos, o governo somali (eleito no Quênia) continua sem apoio popular. Não foi capaz de criar uma base sólida junto a uma população já acostumada à divisão - a Somalilândia, por exemplo, achou por bem reforçar a insubmissão ao governo apoiado pela Etiópia e pediu hoje à União Africana o reconhecimento de sua independência.

Uma possível solução para a Somália parece vir de um vizinho de passado trágico: Ruanda. O país que viveu um dos episódios mais traumáticos da história recente - um genocídio organizado promovido por forças de dentro do próprio governo, em 1994 - propõe-se hoje a treinar o exército somali. É uma tentativa de fazer com que o próprio país cure suas feridas, uma ação no sentido inverso à que vem sendo praticada . Ruanda encontrou relativa estabilidade sob o governo de Paul Kagame, atual presidente e ex-comandante das tropas que retomaram o país e forçaram a saída dos génocidaires em 1994. Eles sabem, por experiência própria, que enquanto o país não for capaz de cuidar de si os conflitos continuarão a ser fomentados, enquanto a ajuda humanitária mantém nossas consciências apaziguadas. Que a ajuda vá além do treinamento de tropas e envolva o sentimento de reconstrução, é isso que esperamos.

Sobre o apoio de Ruanda à Somália: As we go to Somalia..., de Thomas Kagera (The New Times/Ruanda)

26.1.07

Ryszard Kapuscinski



Muita água rolou por essas pontes - e entre as enchentes e buracos - desde a segunda-feira. Logo na terça, notícia velha, a presidência dos EUA anunciou a intenção de reduzir o uso de combustíveis derivados de petróleo. Pretende, nos próximos anos, negociar menos com parceiros complicados como Arábia Saudita e Venezuela, e talvez iniciar uma aproximação com exportadores agrícolas, Brasil incluído.

A reunião do Mercosul terminou em um documento pedindo a manutenção da democracia. Na África, o Fórum Social Mundial debateu o excessivo pragmatismo do socialismo latinoamericano. Lula resumiu tudo com um "cada país faz o discurso que quer".

Bilal (alguns nomes não funcionam muito bem em português), ministro da Informação da Síria, anunciou o início das operações de uma linha aérea direta Teerã-Damasco-Caracas.

No Líbano, a coisa ficou feia, e embora o primeiro-ministro Siniora tenha conseguido levantar fundos com outros governos para investir no crescimento de seu país, agravando ainda mais a impagável dívida externa libanesa, o clima em Beirute ficou pesado, muito pesado.

Mas terça-feira aconteceu outra coisa. Ryszard Kapuscinski, jornalista polonês, faleceu. Tinha 74 anos, conhecia meio mundo e foi - ele merecia realmente o título - uma testemunha ocular da história, particularmente da história africana. Biografou Hailé Selassié, viu a Europa sair do centro do universo, tornou-se o escritor polonês mais traduzido do mundo. Disputou o Nobel de Literatura com Orhan Pamuk, ano passado. Foi à Índia e China sem conhecer-lhe os idiomas. E teve sensibilidade para permanecer neutro sempre que possível. Descobriu as dificuldades do regime socialista em sua Polônia natal, onde o acesso aos livros era proibido e, anos após a queda do regime, pessoas ainda voltavam dos gulags com seus traumas e histórias de crueldade. Viu os efeitos do imperialismo nas colônias remanescentes da África: o fim da dominação francesa na Argélia, o Congo, um continente inteiro tornado palco para guerras que não afetariam os países que a financiavam, porque no final das contas era mais fácil fazer um mea culpa e enviar algumas forças de paz. E soube contar as histórias que viu como poucos.

Ébano, um livro incrível sobre os mais de quarenta anos que passou na África, Imperador, a biografia de Hailé Selassié e Minhas Viagens com Heródoto, um apanhado de toda sua carreira e uma homenagem ao primeiro repórter da história, foram todos publicados no Brasil e são obras interessantíssimas, tanto do ponto de vista factual como do literário. Valem a leitura.

O século vinte não foi apenas um século de guerras e totalitarismos. Também foi o século da descolonização, de uma grande libertação. Três quartos dos residentes de nosso planeta se tornaram independentes e, pelo menos do ponto de vista formal, passaram a ser considerados cidadãos do mundo. Nunca houve tal evento na história, e nunca haverá de novo.
(Ryszard Kapuscinski, em discurso de agradecimento pelo prêmio Grinzane Cavour)

Pelo menos esse século teve cronistas à altura.

22.1.07

De todos os lados

Para o inferno, gringos! Vão para casa! Vão para casa! Nós somos livres aqui, e o seremos mais a cada dia.

Hugo Chávez, presidente da Venezuela, em seu programa dominical - 21/1/2007

Se nós estivermos seguros, vocês poderão estar seguros, e se nós estivermos salvos, vocês poderão estar a salvo. E se nós formos atacados e mortos, vocês serão definitivamente - com a permissão de Alá - atacados e mortos.

Ayman al-Zawahiri, segundo na linha de comando da al-Qaeda, em vídeo interceptado hoje pelo instituto SITE.

Se o discurso diplomático não anda muito em alta, pelo menos não deixa margem a dúvidas. A enorme importância estratégica do petróleo no mundo contemporâneo - ironicamente fomentada em grande parte pelos Estados Unidos no último século - levou países tradicionalmente submissos (e outros nem tanto) a uma posição de relativo poder econômico e, por conseqüência, a uma certa liberdade de ação. O império, hoje, não é mais capaz de manter o silêncio às custas de subornos e ameaças. Pelo menos não o silêncio de todos.

As posições defendidas nos últimos dois dias pela Venezuela e pela al-Qaeda, embora agressivas na forma, são razoáveis no conteúdo. Em tempos de interdependências, a idéia de soberania muitas vezes acaba diluída entre acordos e concessões, num ambiente fértil para a manipulação de governos e grupos por outros governos e grupos mais poderosos. O potencial destrutivo das duas declarações acima é a resposta em linguagem clara à posição dos Estados Unidos e uma afirmativa justa - ainda que belicosa: não mexam conosco!

Hugo Chávez, que desde sua posse recebe críticas redobradas por parte da imprensa brasileira, vem agindo dentro da legalidade, mesmo que isso não costume ser lembrado. A decisão da oposição venezuelana de não participar das últimas eleições propiciou a constituição de um Congresso inteiramente situacionista. Mas o jogo foi limpo, ainda que a vitória tenha sido por WO. A não-renovação da licença da Radio Televisión Caracas está dentro dos parâmetros legais, e a alegação de supressão da liberdade de imprensa é pálida diante da participação da emissora no último golpe contra o governo, em 2002. Resta saber qual a possibilidade de surgimento de grupos de mídia independente - um problema para o povo venezuelano, que deve ser capaz de se organizar de forma crítica em relação ao governo.

Al-Zawahiri defende a reação do mundo árabe em larga escala. Não cita apenas o Iraque: conclama muçulmanos de todos os lugares para a guerra que se trava no Afeganistão, na Palestina, Chechênia, Somália e Argélia. Desafia um império com o fantasma de outro império, que dominou a Europa por séculos. Dificilmente terá razão, mas os EUA também não a têm. Ao usar seu poderio militar para subjugar outros países, cria condições para que a al-Qaeda se imponha como uma alternativa para a libertação.

No final das contas, é assim que dois blocos tão diferentes - os neo-socialistas de Latinoamérica e os fundamentalistas muçulmanos - parecem se ver: como libertadores, proclamadores da independência de um sistema desigual, que não tem sido capaz de dar respostas satisfatórias aos problemas que criou. Talvez a independência não venha. Talvez assistamos a um recrudescimento violento do terrorismo, e talvez tudo continue igual. Mas talvez não. De uma coisa, porém, temos certeza: é tempo de revoluções.

(O vídeo de al-Zawahiri foi interceptado pelo Instituto SITE: http://siteinstitute.org)

18.1.07

(Nós) na periferia

E enquanto nossos vizinhos estreitam as relações com o Irã, o Itamaraty acusa avanços na negociação do acordo de cooperação econômica com o Conselho de Cooperação dos Estados Árabes do Golfo (CCG), conforme noticiou a "Folha de São Paulo" hoje (18/1). O acordo, que começou a ser rascunhado no início de 2005, deve ser fechado até junho.

O ano promete: a reunião do Mercosul já iniciou hoje com a assepsia neo-socialista de Hugo Chávez e deve progredir com a discussão sobre a inclusão de outros países da América do Sul.

As economias podem até funcionar diferente, os governos intervirem mais ou menos, alinhar-se com Washington ou não, acreditar em Jesus, Allah ou no capital. Mas o comércio, este quer ser cada vez mais livre.


(A quem interessar possa: o CCG é composto pelos "Emirados Árabes Unidos, o Reino do Bareine, o Reino da Arábia Saudita, o Sultanato de Omã, o Estado do Catar e o Estado do Coveite", na redação oficial do Ministério do Desenvolvimento. Os nomes curiosos - Bareine e Coveite - são mais conhecidos aqui por seus nomes em inglês, Bahrein e Kuwait)

15.1.07

O mundo está mudando

O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, visitou Manágua neste domingo,onde se encontrou com o recém-eleito presidente nicaragüense Daniel Ortega. Ortega, que no início dos anos 80 fez parte da guerrilha que acabaria por protagonizar um golpe de curta duração na Nicarágua, foi saudado por Ahmadinejad como um companheiro na oposição aos Estados Unidos. Os dois líderes percorreram subúrbios pobres da capital.

O encontro entre os presidentes ocorre no momento em que a tensão existente entre Estados Unidos e Irã é crescente, em grande parte devido à desconfortável posição do exército americano no Iraque. Embora o governo americano negue a intenção de atacar o território do Irã, o bombardeio de uma embaixada iraniana em Arbil, no Iraque, na última quinta-feira, levantou receios quanto às possíveis reações do governo de Ahmadinejad. Apesar de negar oficialmente o desenvolvimento de armas atômicas, o governo em Teerã já informou que não abrirá mão de seu programa nuclear, posição que preocupa a vizinha Israel, único país abertamente aliado aos Estados Unidos na região.

A relação do Irã com países latino-americanos não se restringe à Nicarágua. Antes de ir se encontrar com Daniel Ortega, Ahmadinejad visitou o presidente venezuelano Hugo Chávez, com quem também possui proximidade. A visita ao continente sul-americano - a segunda nos últimos quatro meses - aponta para a consolidação de uma divisão mundial não-religiosa e não-ideológica, baseada no maniqueísmo pró ou contra Estados Unidos. "Nós temos que dar as mãos uns aos outros. Nós temos interesses, objetivos e inimigos em comum", disse o presidente iraniano ao posar ao lado de Ortega.

3.1.07

Confronto aberto

Não demorou tanto a intervenção americana no conflito entre Etiópia e Somália. Duas semanas após o início da guerra e apenas dez dias desde que a secretária dos EUA pediu a atenção de Sam Kutesa, ministro do Exterior da Uganda, para a região, alegando a possível presença da Al-Qaeda junto à União das Cortes Islâmicas, tropas americanas posicionaram-se na costa da Somália para "bloquear a fuga do governo islâmico", de acordo com um porta-voz do Departamento de Estado norte-americano. O bloqueio naval fecha o cerco em torno da Somália, cujas fronteiras já estão impedidas - pela Etiópia, pelo Djibute, onde se encontra uma base militar americana, e pelo Quênia, que deportou hoje refugiados muçulmanos. O espaço marítimo somaliano já vem sendo vigiado também pelo Iêmen há algum tempo, em outra tentativa de impedir a saída de muçulmanos.

Tudo isso acontece quando o exército etíope declara a disposição de perseguir "até o último muçulmano" na Somália. A cruel e recorrente crise de refugiados na África ganha contornos assustadores. Com o isolamento do país, o que se desenha é a aniquilação de um povo, já que a grande maioria da população é sunita. A agência de refugiados da ONU já pediu ao governo queniano que suspendesse as restrições de fronteira, mas a pouca credibilidade do órgão no continente e o apoio (agora explícito) dos Estados Unidos fazem crer que o apelo não deve ser ouvido.

A Somália não possui um governo formal desde 1991, ano da queda do governo de Siad Barre, que contava com o apoio da União Soviética. Desde então, a guerra entre clãs vem disputando espaço com governos provisórios e as Cortes Islâmicas. A divisão do país em Somália, Somalilândia e Puntlândia não contribuiu para a organização do território, mas permitiu que líderes religiosos conseguissem estabelecer uma ordem relativa através da aplicação da shar'ia, a lei religiosa muçulmana. Embora controlando a capital, Mogadíscio, a União das Cortes Islâmicas convive com um governo de transição eleito em 2004 em Nairóbi, no Quênia. Com o apoio da Etiópia e, ao que tudo indica, do Quênia, o governo de transição deve tentar se impor novamente - desta vez através da força.