7.2.06

Praia

Vinha andando pela areia, tropeçando aqui e ali no cascalho triturado em milhares de anos de luta entre a terra e o mar. Pensava ele mesmo na guerra, não aquela vazia e triste que virava notícia, mas no confronto diário que travava com sua própria consciência. O rochedo e o oceano que rugia e teimava lá dentro. O mar, com sua falsa placidez, respingava-lhe gotas de sal no rosto e trazia cheiros diversos, que metamorfoseavam-se em rostos, idéias e fisicalidades. Do lado de lá o sol se punha, e nessa direção ele ia, afastando-se cada vez mais do levante. Mas a noite trazia estrelas, e assim uma certa paz se avizinhava.

Andou - por quanto tempo? Não media mais os passos, não se orientava mais por marcos terrestres ou marítimos. Não podia mais deduzir latitude e longitude, flutuando numa deriva voluntária. De longe poderia ainda pressentir o ruído de uma cidade que espantava a escuridão da madrugada com suas luzes feéricas. Percebia na divisa do horizonte frágeis lanternas e iscas luminosas.

Pela estrada fronteiriça que agora andava, o território onde a maré disputava palmo a palmo o domínio sobre a areia, estendia-se o tapete prateado de uma lua vermelha, redonda e ameaçadora. Pois naquele momento decidiu caminhar, ele também, pelos pequenos cristais brancos onde a umidade lhe refrescava os pés.

Ao longe, viu uma forma desenhada pelo luar.

Não desviou-se, sequer pensou em cumprimentar. Compreendeu uma figura de mulher, longos cabelos em cascata, pele branca. Sentada na praia, adivinhava segredos deixados nas ondas.

Seguiu em frente, mas força incontrolável o arrastou para fora da borda do mar. Foi-se chegando, e antes que pudesse desenhar uma saudação, ouviu a pergunta, suave e inexorável:

- Onde você vai chegar caminhando assim?

Não sabia. Aliás, não pretendia saber do caminho mais que seus passos. Irritou-se, efêmero, com a invasão de sua intimidade. Mas não podia se irritar com aquela mulher. Com qualquer outra coisa, menos com ela.

Respondeu que não sabia. Ou, por outra, não respondeu: deixou seus olhos e mãos manifestarem sua ignorância. Ela alisou a areia ao seu lado em um convite igualmente mudo. Aquiescendo, sentou-se ao lado dela.

- Essa hora é bela para se ver o mar. Entre o oceano e o céu não há "meu" e "seu", apenas o vento que fustiga as águas e carrega as nuvens. De noite, tudo é uma coisa só.

A voz dançava como uma onda que não arrebenta. Debaixo de uma miríade de faróis suspensos, os corpos foram iluminados na maré enchente que unia e desunia, fustigava e recolhia-se em carícias. O sonoro mar englobava todos os ruídos, misturando-os em um acorde suspenso.

Acordou ainda a tempo de vê-la, pé ante pé, na direção do mar. Sumiu na espuma.

O mar, agora, teria um filho. Que não seria seu ou dela, mas totalmente do mar.