26.1.07

Ryszard Kapuscinski



Muita água rolou por essas pontes - e entre as enchentes e buracos - desde a segunda-feira. Logo na terça, notícia velha, a presidência dos EUA anunciou a intenção de reduzir o uso de combustíveis derivados de petróleo. Pretende, nos próximos anos, negociar menos com parceiros complicados como Arábia Saudita e Venezuela, e talvez iniciar uma aproximação com exportadores agrícolas, Brasil incluído.

A reunião do Mercosul terminou em um documento pedindo a manutenção da democracia. Na África, o Fórum Social Mundial debateu o excessivo pragmatismo do socialismo latinoamericano. Lula resumiu tudo com um "cada país faz o discurso que quer".

Bilal (alguns nomes não funcionam muito bem em português), ministro da Informação da Síria, anunciou o início das operações de uma linha aérea direta Teerã-Damasco-Caracas.

No Líbano, a coisa ficou feia, e embora o primeiro-ministro Siniora tenha conseguido levantar fundos com outros governos para investir no crescimento de seu país, agravando ainda mais a impagável dívida externa libanesa, o clima em Beirute ficou pesado, muito pesado.

Mas terça-feira aconteceu outra coisa. Ryszard Kapuscinski, jornalista polonês, faleceu. Tinha 74 anos, conhecia meio mundo e foi - ele merecia realmente o título - uma testemunha ocular da história, particularmente da história africana. Biografou Hailé Selassié, viu a Europa sair do centro do universo, tornou-se o escritor polonês mais traduzido do mundo. Disputou o Nobel de Literatura com Orhan Pamuk, ano passado. Foi à Índia e China sem conhecer-lhe os idiomas. E teve sensibilidade para permanecer neutro sempre que possível. Descobriu as dificuldades do regime socialista em sua Polônia natal, onde o acesso aos livros era proibido e, anos após a queda do regime, pessoas ainda voltavam dos gulags com seus traumas e histórias de crueldade. Viu os efeitos do imperialismo nas colônias remanescentes da África: o fim da dominação francesa na Argélia, o Congo, um continente inteiro tornado palco para guerras que não afetariam os países que a financiavam, porque no final das contas era mais fácil fazer um mea culpa e enviar algumas forças de paz. E soube contar as histórias que viu como poucos.

Ébano, um livro incrível sobre os mais de quarenta anos que passou na África, Imperador, a biografia de Hailé Selassié e Minhas Viagens com Heródoto, um apanhado de toda sua carreira e uma homenagem ao primeiro repórter da história, foram todos publicados no Brasil e são obras interessantíssimas, tanto do ponto de vista factual como do literário. Valem a leitura.

O século vinte não foi apenas um século de guerras e totalitarismos. Também foi o século da descolonização, de uma grande libertação. Três quartos dos residentes de nosso planeta se tornaram independentes e, pelo menos do ponto de vista formal, passaram a ser considerados cidadãos do mundo. Nunca houve tal evento na história, e nunca haverá de novo.
(Ryszard Kapuscinski, em discurso de agradecimento pelo prêmio Grinzane Cavour)

Pelo menos esse século teve cronistas à altura.

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